RECORDAÇÕES
É muito bom celebrar este aniversário natalício no primeiro domingo do Advento. Tempo de saudade. Esperança. Gratidão. Conversão. Tempo de Maria: “o Senhor fez em mim maravilhas”. Tempo de Isaías: “os céus vão se abrir e derramar o Salvador”. Tempo de João, o Batista: “Voz que clama no deserto, preparai os caminhos do Senhor, endireitai as veredas para ele.” Ano da Fé: o ser humano leva dentro de si um desejo misterioso de Deus. “Desejar a Deus é um sentimento inscrito no coração do homem, porque o homem foi criado por Deus e para Deus. Deus não cessa de atrair o homem a Si e só em Deus é que o homem encontra a verdade e a felicidade que não se cansa de procurar.” (Porta Fidei, 27) É dentro deste contexto de gratidão, de esperança, de saudades, de Advento, de Fé que desejo compartilhar com vocês, que vieram aqui rezar e agradecer comigo, um pouco de minha vida:
Há setenta anos, minha mãe Amélia Sossai deu-me a luz. Ao abrir os olhos deparei-me com um ambiente familiar amplo aquecido pela fé dentro de um casarão de estuque, dois pisos, chão de tábuas, cobertura de tabuinhas: braúna. Ali, viviam três famílias: meu avô, minha avó; pai e mãe com o irmãozinho Celso; tio e esposa com 3 filhos; 3 tias ainda solteiras. Simplicidade, trabalho e alegria. Era já o terceiro filho: Edviges, a primeira, morrera com apenas 2 anos; Celso, hoje pai de 4 filhos, e eu. Mais tarde, viria a Edviges que ficou no lugar da primeira. Ao esperar mais um irmãozinho, minha querida mãe veio a falecer. Tinha eu apenas 2 anos e 7 meses. Uma tragédia que foi amortecida pelo carinho desta grande família, mas deixou marcas indeléveis ao longo de minha história. Com 5 anos incompletos, recebi a segunda mãe, Marta Altoé, que, com a graça de Deus, é nossa bênção com seus 91 anos. Vieram mais 5 irmãos. Hoje somos 8 (seis homens e duas mulheres). Todos vivos. Uma bênção de Deus. Com apenas 9 anos, fui para o Seminário de Jaciguá, no sul do Estado, e iniciei uma trajetória que me levou à profissão na vida religiosa salesiana (51 anos), ao presbiterato (40 anos no próximo dia 16) e ao episcopado (16 anos no próximo dia 2 de fevereiro).
Como base sou o que sou desde a minha vinda ao mundo: o mesmo sorriso, uma velada tristeza disfarçada em serenidade, traços de bondade, boa dose de impaciência e ansiedade, preferência pela solidão e contemplação, certa preguiça intelectual e adesão ao prático, paixão pelo belo e harmônico, carência de afeto. Choro pouco. Precisaria chorar mais. Comove-me a bondade, o sofrimento inocente, as injustiças, espetáculos de arte. Irrita-me a desonestidade, a covardia de quem estraga a vida de pessoas e instituições escondendo-se no anonimato. Posso afirmar com certeza que, pela graça de Deus, nunca agi maldosamente em relação a outras pessoas mesmo que me tenham feito mal. Busquei sempre encontrar o lado positivo que existe em cada ser humano.
Exercendo os diversos cargos e funções, esforcei-me por construir e reconstruir a reconciliação e, mesmo sofrendo, tentei dar a cada um o espaço que o faria mais feliz. Nem sempre acertei. Tenho consciência dos meus limites. São muitos. Mesmo assim tentei fazer o melhor possível em todas as circunstâncias. Deus me deu uma plêiade de amigos e amigas. Mais do que mereço. Alguns e algumas estão no fundo do coração, bem no lado esquerdo do peito. Sempre existe aquela pessoa que preferimos guardar no segredo do coração. Só os que se amam sabem. Fui rodeado de bênçãos do céu. Enumero as principais: minha família, minha terra natal, Venda Nova do Imigrante, o Estado do Espírito Santo, a grande família salesiana, o povo mineiro, a diocese de Colatina (em especial a cidade de Colatina onde moro com seu bom povo). Algumas paixões (espirituais ou materiais) marcaram minha vida: meu pai Máximo Zandonade, Maria com o título de Auxiliadora dos Cristãos e agora Nossa Senhora da Saúde, Dom Bosco, Terezinha do Menino Jesus, meu primeiro pároco Frei João Echávarri, os papas João XXIII e Bento XVI, a juventude, a comunicação, meu presbitério e seminaristas, as secretárias, os fusquinhas (Jeremias, Oséias, Jonas e Amós), as rosas e, é claro, o Botafogo. Algumas mágoas e frustrações: não ter conhecido bem minha mãe, não ter desenvolvido os dons musicais (sonho ainda tocar bem algum instrumento e um dia reger, com competência, uma orquestra…), não ter podido me especializar em nada. Contudo, a principal frustração é esta: não merecer ainda a graça de uma paixão arrebatadora por Jesus Cristo. Se Ele me perguntasse uma, duas ou três vezes como fez a Pedro: “Décio, tu me amas”? Responderia com sinceridade: Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que ainda não te amo.
A figura paradigmática de Abraão, o verdadeiro patriarca da fé, me consola e me dá esperança: ele, aos 75 anos, experimentou uma reviravolta em sua vida. Teve coragem de sair da mesmice, deixar tudo, acreditando em um chamado estranho, humanamente impossível de ser realizado, e que vinha de Alguém superior que o tratava como amigo. Confiou cegamente em Deus. É o pedido que está embutido no lema-oração de meu sacerdócio e episcopado: “Senhor, que eu veja”, “Domine, ut videam”. “Kurye, ina anablepso” (Lc 18,41). Desejo ver. “Dai-me, Senhor, a coragem de abandonar a mendicância à beira da estrada como o cego de Jericó, largar o manto puído que me fecha em mim mesmo e dar um salto despojado em direção a Ti, Meu Senhor e meu Deus, que por mim morreste na cruz”.
A primeira oração que faço todos os dias ao amanhecer é esta: “Ó meu Pai Criador, por Teu Espírito Santo de Amor, atraí-me para Jesus Teu Filho amado e meu Redentor.” É por isso que me agarro na saia de Maria que aqui aprendi a honrar como Nossa Senhora da Saúde. Ainda há tempo. Perdoem-me os (as) que magoei ao longo da estrada. Um abraço de gratidão para milhares de pessoas que escondidamente rezam por mim. Se fiz, faço ou farei algum bem devo a elas que não se cansam de me colocar junto de Deus. A Ele a glória pelos séculos dos séculos sem fim. Rezem por mim. Amém.
2 de dezembro de 2012
Dom Décio Sossai Zandonade